Por Deborah Berlinck
Colapso do Iraque expõe fracasso de tentativas de ‘exportar democracia’ ao Oriente Médio GENEBRA – As tentativas do Ocidente, em particular, dos Estados Unidos, de criar – ou impor – uma democracia liberal no Oriente Médio e na Ásia fracassaram. E a lista de exemplos é longa: o Iraque está sob ameaça extremista e tomado por disputas sectárias; a Síria, destruída pela guerra; a Líbia, desmoronando nas mãos de milícias; o Afeganistão, sem líder e sem rumo desde junho, e o Egito, de volta à ditadura militar. Muitos perguntam quem tinha razão. George W. Bush, que invadiu o Iraque com o projeto de impor democracia no “Grande Oriente Médio”, seu sucessor, Barack Obama, que praticamente se retirou da região ou os que acham que a democracia ocidental não se encaixa no Oriente?
Todos estão errados, diz Philippe Moreau Defarges, do Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri). Para ele, George Bush errou porque a democracia não se impõe, mas é construída pelas próprias pessoas:
– Bush imaginou que o Iraque se resumia a um Estado. Mas não viu que por trás deste Estado há sunitas, xiitas e curdos. Enganou-se completamente por falta de reflexão política.
Já Barack Obama também pecou pela falta dessa reflexão ao decidir não fazer nada numa região que desde o fim da Segunda Guerra vinha sendo “protegida” ou “mantida em paz” pelos EUA.
– Obama está errado porque o Oriente Médio diz respeito aos EUA – avalia.
E quanto à democracia ocidental, diz Defarges, ela traz uma ideia de igualdade “inexoravelmente universal”.
Árabes que se educam e viajam também almejam igualdade.
– Árabes e iranianos não são diferentes de nós, ocidentais – resume o pesquisador. Shaul Gabbay, especialista do mundo muçulmano na Universidade de Denver, nos EUA, diz que tanto Bush quanto Obama estão certos e errados, dependendo da ocasião. A escolha e a dosagem entre a guerra de Bush e a retirada de Obama vão depender do que o Ocidente quiser mais agora: estabilidade ou democracia. Na Síria, por
exemplo, se o objetivo for democracia, o presidente Bashar al-Assad deveria ser derrubado: os Assad pertencem à minoria alauita (11%) que domina tudo no país, da política à economia. Mas a incerteza sobre quem pode substitui-lo – extremistas sunitas do Estado Islâmico – é pior.
– Tentar implementar teoria de valores democráticos por todo lugar, dá nisso: aí você obtém consequências não intencionais, que é exatamente o que está acontecendo na Síria – diz Gabbay.
Ele conclui que na política do Ocidente para a região ainda prevalece a Realpolitik :
– Não estamos realmente interessados em democracia. O Ocidente quer estabilidade.
AÇÕES IGNORAM OUTROS ATORES REGIONAIS
Hasni Abidi, diretor do Centro de Estudos e Pesquisa do Mundo Árabe e Mediterrâneo e professor da Universidade de Genebra, vai direto ao ponto: o principal interesse das potências ocidentais no Oriente Médio é a própria segurança. Para ele, Bush falhou ao anunciar que criaria um novo Oriente Médio em vez de dizer que queria simplesmente se livrar do ditador Saddam Hussein. A resposta dos vizinhos foi “pânico”.
– Ele realmente ignorou a complexidade regional. Os iranianos não aceitariam nunca que os EUA virassem seus vizinhos. Os países do Golfo pensaram: ‘um Iraque democrático quer dizer que amanhã serão o Irã e a Arábia Saudita (democráticos)’. Sem falar nos sunitas dos países árabes que diziam: ‘atenção, são os xiitas que vão governar’. Então havia toda a região não apenas contra a guerra, mas também contra o projeto de Bush – explica Abidi.
Abidi resume Obama em uma linha: um presidente que não viaja e não gosta de política externa. O resultado é os EUA colhendo extremismo após mais dois erros: a retirada precipitada das tropas americanas do Iraque e do Afeganistão.
Os três especialistas – Defarges, Gabbay e Abidi – rejeitam a ideia de que democracia não se aplica no Oriente Médio e insistem na palavra tempo: democracia é um processo. Mas o caminho vai ser longo para países onde a cultura é baseada no patriarcado ou na afiliação a tribos com extrema interpretação do Islã, como Arábia Saudita ou Irã, prevê Gabbay.
Ele lembra que a Primavera Árabe criou uma alta expectativa de democracia – talvez elevada demais – que resultou em frustração, sobretudo numa região hoje populada, na sua maioria, por jovens com menos de 25 anos.
– Muitos jovens imaginaram: ‘Ótimo, vamos ser como a Suécia e os EUA’, países vistos como prósperos. Aí vem a realidade, onde não há trabalho, o que resulta em frustração ainda maior e pode desembocar em terrorismo ou numa interpretação ainda mais extrema da religião. Este é o momento onde o Ocidente tem a responsabilidade em criar esperança – diz o pesquisador da Universidade de Denver.
Abidi insiste neste ponto: os ocidentais não ajudaram os países da Primavera Árabe no momento crucial – a transição após a queda das ditaduras.
– Temos a impressão que os EUA passaram de um extremo ao outro, quando tinham que ter escolhido um meio termo – lamenta.
A Líbia de hoje, se desmanchando entre milícias tribais, é um exemplo. Para Abidi, Obama falhou ao não compreender que a Líbia pós-Muamar Kadafi foi deixada sem nenhuma instituição de pé. Kadafi havia eliminado tudo, menos ele mesmo.
– Disseram aos árabes: ajudamos vocês a se livrarem dos seus tiranos, mas cabe a vocês se virarem depois sozinhos. Ora, eles não podem fazer a transição sozinhos! Há paralelos na América Latina, quando uma ditadura cai, dois sistemas desmoronam, segurança e Justiça, construídos em torno do ditador. Hoje na Líbia e no Egito escuta-se:
‘Ah, como éramos mais seguros com Kadafi e Mubarak!’ – diz Abidi.
O avanço dos extremistas do Estado Islâmico faz as potências ocidentais pensarem em Assad, o homem de ferro da Síria, inimigo número um do Ocidente, mas peça fundamental no jogo de poder da região. É melhor com ele ou sem ele? Abidi pensa no erro inicial do Ocidente em não apoiar suficientemente as manifestações de rua dos sírios, essencialmente, pacíficas. Defarges e Gabbay acham que foi um erro romper tão rapidamente com Assad. Como disse Defarges, a pior política internacional é a “política da moral”. Citando Winston Churchill, ele conclui:
– Diante de dois demônios (Assad e o Estado Islâmico), é preciso escolher um. Não dá para lutar contra os dois.
FONTE: O Globo