Por André Petry
Os drones – como os americanos chamam as aeronaves pilotadas por controle remoto – são um show como arma de guerra, mas apresentam um enorme desafio à ética.
Há mais de um século os militares procuram um avião que,controlado remotamente, possa espionar as fileiras inimigas e, de preferência atacá-las. A busca começou na I Guerra Mundial, tomou impulso durante a Guerra Fria e atingiu um certo apogeu quando Israel inventou uma versão moderna de aviões não tripulados durante os conflitos com o Líbano na década de 80. Até então os aviões eram usados em missões de reconhecimento. Os americanos, com seu olho de águia para a tecnologia, inspiraram-se no sucesso israelense e criaram seu próprio avião de controle remoto – o Predator, que entrou em operação em 1995. Era um avião humilde, que os militares americanos tratavam como mero “planador com motor de snowmobile”.
A história começou a mudar em 12 de setembro de 2001, dia seguinte aos devastadores atentados a Nova York e Washington. Naquele dia, os Estados Unidos despacharam três aviões controlados remotamente para o Afeganistão. A novidade é que as aeronaves já não eram apenas espiãs, não serviam somente para missões de reconhecimento. Além de reunirem tudo o que a tecnologia moderna permitia – de sensores miniaturizados a câmeras de alta definição -, eles carregavam armas: explosivos, bombas, mísseis.O drone (zangão, em inglês), como os americanos chamam o avião pela semelhança, na barulho e na forma, com um zangão, começou a mudar o curso dos conflitos militares. Em 2009, ao falar da eficácia dos drones, Leon Panetta, então diretor da CIA, afirmou: “Falando francamente, não tem nada igual”.
Os drones americanos, em geral, são pilotados por dois militares, que ficam numa base em território americano. Um pilota o avião. O outro comanda sensores e câmeras. Versões mais modernas dispensam até o controle remoto. Os drones voam autonomamente, seguindo um plano previamente estabelecido. São máquinas maravilhosas. Filmam tudo, em imagens de alta definição, não oferecem risco à vida de nenhum piloto, podem voar a mais de 20.000 metros de altura, carregam toneladas de explosivos, fazem voos transoceânicos e podem permanecer no ar por horas, dias, semanas – já há projetos de drones que ficam anos sem precisar aterrissar. São o sonho de qualquer militar. São precisos e rápidos. Foram a principal arma americana para localizar e matar cinquenta líderes da Al Qaeda, virtualmente destruindo a organização terrorista. Os militares saúdam os drones como a chegada da guerra cirúrgica e asséptica como um videogame.
Por trás das maravilhas divulgadas sobre os drones, no entanto, há um universo controverso, incômodo e desconcertante. Mesmo que a disparidade na capacidade militar entre inimigos exista desde que alguém jogou a primeira pedra na savana africana, é perturbador que um militar, sentado numa poltrona, numa sala com ar condicionado, possa matar alguém do outro lado do planeta.Os ataques de drones começaram no Afeganistão, durante o governo de George W. Bush, em resposta aos atentados de 2001. Mas usando a autorização dada pelo Congresso ainda no governo anterior para enfrentar os terroristas, o governo de Barack Obama alçou os drones à sua era de ouro. Os ataques se espalharam para o Paquistão, o Iêmem, a Somália. Já houve até operações nas Filipinas. Em qualquer país, os alvos são sempre terroristas, ou militantes, ou suspeitos – mas por suspeitos, entenda-se qualquer pessoa que age como se fosse terrorista. Há drones sob o controle da Força Aérea, mas outros são comandados pela CIA, a agência de serviço secreto. Embora a frequência dos ataques venha caindo nos últimos meses, estima-se que, só no Paquistão, o total de mortos oscile entre 2.500 e 3.500. Entidades internacionais calculam que, entre os mortos, pode haver até 900 civis e 200 crianças.
Há dúvidas sobre a legalidade, a moralidade e até a eficácia dos ataques. A Casa Branca alega que as operações estão respaldadas pela autorização do Congresso concedida ainda no governo Bush, e os ataques dos drones têm sido singularmente precisos e eficazes, como mostra o desmonte da Al Qaeda. Os críticos dizem que a Casa Branca extrapola abusivamente o alcance da autorização do Congresso ao alvejar suspeitos cuja identidade nem sequer conhece, e não se pode falar em precisão quando, numa lista de até 3.500 mortos, apenas cinquenta são líderes da Al Qaeda, o alvo principal. Em discurso recente, o presidente Barack Obama admitiu o uso abusivo de drones ao dizer que, de agora em diante, eles só serão usados como última opção e só quando houver “quase certeza” de que o alvo está no local sob mira e não há risco para civis. Mas nada disse sobre a CIA, que aparentemente, continua comandando drones, apesar de ser uma agência secreta.
Sob as leis internacionais, a questão é ainda mais complexa. Um relatório das Nações Unidas, que abriu uma investigação especial sobre as vítimas civis dos drones, afirma que, se outros países alegassem a mesma autoridade dos Estados Unidos para “matar pessoas em qualquer lugar e a qualquer hora, o resultado seria o caos”. A ambiguidade moral da atitude americana é evidente. Em artigo publicado no New York Reviewof Books, o diretor da HumanRightsWatch. Kenneth Roth, questionou: “Será que o governo realmente tem o direito de atacar qualquer um que entenda ser um combatente contra os EUA? E se essa pessoa estiver caminhando nas ruas de Londres ou Paris?”.
Os drones acabaram transformados em estrelas da guerra sem que ninguém antevisse o fenômeno. Assim, a arma começou a ser empregada sem limites éticos, sem objetivos estratégicos, sem uma doutrina. O desafio é adaptar os códigos militares do século XX a uma arma do século XXI. Nas décadas de 40 e 50, os presidentes Harry Truman e Dwight Eisenhower tiveram de enfrentar o desafio de definir uma doutrina para disciplinar o uso de uma nova tecnologia militar – a nuclear. Houve abusos que os vencedores deixaram esquecidos nas cinzas. Na II Guerra, depois da explosão das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki, houve militares americanos de alta patente confessando o temor de que poderiam acabar sendo processados como criminosos de guerra caso o Japão tivesse saído vitorioso. Mas a política americana, com a definição de limites o objetivos, ajudou a evitar uma hecatombe nuclear. Obama precisa alçar-se ao desafio de disciplinar a nova tecnologia, enquanto há tempo – em vez de estabelecer um padrão de uso que, como diz a ONU, levaria ao caos.
No mundo civil, as regras estão começando a aparecer, pois é inevitável que drones sigam o mesmo caminho de outras inovações tecnológicas, como a internet e o GPS, que foram criadas no meio militar e acabaram virando objetos de uso comercial. Nos próximos cinco anos, a Federal AviationAdminstration (FAA), órgão responsável pela aviação americana, estima que haverá cerca de 7.500 drones voando no país em atividades civis: monitorando o clima, fertilizando plantações, ajudando em operações de resgate, patrulhando fronteiras. Já há empresas de energia elétrica que usam drones para inspecionar o estado das linhas de transmissão. Os estados americanos já disputam entre si para ser sede da nova indústria, as universidades já estão criando as primeiras faculdades de drones. Num sinal de que o futuro é vasto, na semana passada a Domino’s, cadeia de lojas de pizza, postou um vídeo no YouTube mostrando um drone voando sobre árvores e rios para entregar duas pizzas a um cliente – aqui, sim, rápido, cirúrgico e eficaz. E sem dúvidas éticas.
FONTE: Veja