Por Maria Cristina Fernandes e André Guilherme Vieira
Diretriz do Ministério da Defesa determina que as Forças Armadas mantenham-se mobilizadas para eventual solicitação de emprego em apoio aos órgãos de saúde e de segurança pública. Entre as possibilidades cogitadas para o recurso às Forças Armadas estão o apoio no patrulhamento de fronteiras, cujo fechamento, em quase toda a América do Sul, foi ampliado na quarta-feira, a descontaminação de material, campanhas de conscientização, logística e transporte de infectados.
Não está listado como prioridade, mas uma das razões determinantes para o estado de prontidão determinado pelo ministro Fernando Azevedo e Silva é o temor de que o agravamento na tensão do sistema prisional requeira um reforço das Forças Armadas. O Exército já está no perímetro externo da Penitenciária Federal da Papuda, no Distrito Federal, por meio de uma Operação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), desde antes da eclosão do coronavírus.
No domingo à noite, rebeliões em cinco presídios levaram à fuga de 1.389 presos, parte dos quais já foram recapturados. As fugas teriam sido motivadas pela suspensão das saídas temporárias, da saída programada para a Páscoa e das visitas. As duas medidas fazem parte do rol de recomendações do Ministério da Justiça às secretarias estaduais de administração penitenciária em função do coronavírus.
A tensão com as medidas somou-se à reação dos presos a restrições às quais líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC) estariam sendo submetidos. Um general que já atuou em operações de segurança nacional prevê que o tráfico se valerá dos serviços de entrega via motoboy para continuar a abastecer consumidores cuja demanda deve crescer no confinamento doméstico.
O fechamento de fronteiras com os vizinhos sul-americanos é uma tentativa de conter o fornecimento dos traficantes, ainda que não se tenha ideia do grau de eficácia em rotas operadas há décadas por meio de propinas a agentes de vigilância e acordos com proprietários de terras de fronteira.
As medidas de prevenção a serem tomadas pelo coronavírus no Exército não passam pela suspensão do serviço militar, iniciado em 2 de março, ou das aulas nas academias militares, em regime de internato. Estão sendo reavaliadas as quantidades de alunos por sala de aula e as condições em que atividades em grupo serão realizadas. Eventos comemorativos, como o 31 de março, aniversário do golpe militar de 1964, podem vir a ser cancelados.
O Exército ainda não tem casos confirmados de coronavírus, ainda que haja suspeitos de contaminação, entre os quais médicos dos hospitais militares. Foi o Hospital das Forças Armadas, em Brasília, que confirmou o coronavírus dos dois oficiais da reserva que são ministros do governo, general Augusto Heleno (GSI), e o almirante Bento Albuquerque (MME). É no HFA onde também têm sido feitos os exames do presidente Jair Bolsonaro.
Antes mesmo de as diretrizes do Ministério da Defesa serem conhecidas, governadores já vinham buscando estreitar contatos com os comandos locais do Exército. Na quarta-feira, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), recebeu o comandante militar do Sul, Antonio Miotto, no Palácio Piratini, para discutir a integração do Exército nas medidas emergenciais do Estado. Miotto transferirá o comando no fim de abril, quando passará à reserva, em cerimônia fechada e sem plateia. A maior parte dos presídios do país está sob o comando dos governadores.
Ao anunciar as medidas restritivas nas penitenciárias, o ministro da Justiça, Sergio Moro, disse esperar contar com a “compreensão” dos presidiários. “Dificilmente terá. Proibir visita é jogar lenha na fogueira”, diz Luiz Eduardo Soares, ex-secretário de Segurança Nacional. Soares diz que as medidas visam à proteção dos próprios presos, mas intervêm numa rotina sagrada, controlada pelas facções que dominam o sistema penitenciário: “Geram uma situação explosiva porque expõe as condições de superlotação e de higiene em que vivem”.
O ex-secretário cita dados da Rede de Observatórios de Segurança sobre as 722 mil pessoas presas num sistema penitenciário de 436 mil vagas. A situação mais dramática de superlotação está nos Estados do Ceará e de Pernambuco, onde a proporção de presos acima das vagas disponíveis supera os 170%. Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo são outros três Estados em que a superlotação impede o mínimo de cumprimento às determinações do Ministério da Saúde para que sejam evitadas aglomerações. Em Estados como Pernambuco, apenas 30% dos presídios têm consultórios médicos. No Rio, calcula-se que um terço dos presos tenham tuberculose, condição que piora a chance de sobrevida de contagiados pelo coronavírus.
A situação dos presídios levou o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) a pedir liberdade condicional para encarcerados maiores de 60 anos, regime domiciliar para portadores de doenças graves, regime domiciliar para grávidas, lactantes e presos por crimes cometidos sem violência, além de medidas alternativas para presos em flagrante por estes delitos. O IDDD incluiu no pedido a progressão antecipada de pena para os presos submetidos ao regime semiaberto.
O pedido, que estava em linha com recomendação do Conselho Nacional de Justiça, obteve liminar do ministro Marco Aurélio Mello, derrubada na mesma quarta-feira em que foi concedida. O veto à liberação de presos se assemelha à conduta do sistema penitenciário americano. No Boletim do Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança, o Irã é identificado como o país de medidas mais radicais em relação ao seu sistema prisional. Cerca de 70 mil presos foram libertados temporariamente para combater a propagação do coronavírus nos presídios. A medida foi tomada depois do aparecimento de infectados. No sábado, foi reportado o primeiro caso de coronavírus em um presídio francês, que reservou celas individuais para o tratamento de presos doentes e ofertou higienizadores de mãos nos estabelecimentos.
A possibilidade de que 60% dos presos do país sejam postos em liberdade é amplamente rechaçada nos meios militares. Um general que já atuou em operações de segurança nacional diz que não é soltando preso que se vai resolver o problema. Outro general diz que a população, além de acuada pelo vírus, se transformaria em refém de criminosos.
A percepção é compartilhada pelas polícias. Em São Paulo, a convergência é facilitada pela presença de generais da reserva em postos-chave. O secretário é João Camilo Pires de Campos, general da reserva, e o comandante do Centro Integrado de Comando e Controle, que envolve as polícias civil e militar, está sob coordenação do general Carlos Sérgio Câmara Saú.
Assim como as Forças Armadas, polícias, como a de São Paulo, estabeleceram diretrizes que vão da ampliação dos casos em que os boletins de ocorrência possam ser registrados pela internet a um plano de contingência para o agravamento na segurança urbana.
Além da ameaça latente do tráfico e dos presídios, uma fonte do Exército cita relatórios da inteligência militar que, por modelos matemáticos, teria calculado elevação de roubos e saques no prazo de 30 a 40 dias, quando a curva de contaminação pelo vírus poderá ter alcançado seu ponto mais crítico e a paralisação da economia atingir seu pico.
Um cenário de caos na segurança pública, a mobilizar conjuntamente Forças Armadas e polícias, pode devolver ao presidente Jair Bolsonaro parte da autoridade perdida com atitudes que o desgastaram junto à opinião pública, como o comparecimento a manifestações do dia 15. Mesmo entre generais não alinhados com o presidente da República e que desaprovam sua condução na crise do coronavírus, um agravamento político que ponha em risco seu mandato, é visto como um cenário indesejável e fonte de tensão adicional para o país e de desgaste para as Forças Armadas.
FONTE: Valor Econômico